Em áreas endêmicas de malária é comum que as pessoas sejam picadas diversas vezes pelo mosquito que transmite a doença. Mas, graças à restrição de ferro causada no fígado do hospedeiro, a própria infecção pelo parasita da malária previne a ocorrência de uma segunda infecção.
A conclusão é de um estudo realizado por um grupo internacional de cientistas, com participação brasileira. Os resultados do trabalho foram publicados em maio na revista Nature Medicine.
De acordo com os autores, o estudo poderá ter impacto nas políticas mundiais de saúde que indicam suplementação de ferro para crianças anêmicas. Em áreas endêmicas para malária, a administração de ferro pode ocasionar, segundo o estudo, superinfecções.
O trabalho foi realizado no Instituto de Medicina Molecular (IMM), em Lisboa (Portugal), com participação de cientistas da Universidade de Oxford (Reino Unido). A pesquisa foi coordenada por Maria Mota, diretora da Unidade de Malária do IMM, e teve colaboração de Sabrina Epiphanio, do Departamento de Ciências Biológicas da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Epiphanio colaborou com o estudo durante seu pós-doutorado, realizado entre 2005 e 2008 no laboratório de Mota no IMM. A primeira autora do estudo, Silvia Portugal – atualmente pesquisadora do National Institutes of Health (NIH), nos Estados Unidos, trabalhou por três meses no laboratório de Epiphanio, na Unifesp, como pesquisadora visitante.
Atualmente a cientista brasileira realiza na Unifesp uma
pesquisa sobre síndrome respiratória associada à malária, com apoio da FAPESP por meio do Programa Jovens Pesquisadores em Centros Emergentes.
De acordo com Epiphanio, que trabalha há nove anos com temas relacionados à malária, o trabalho publicado pelo grupo internacional é um dos raros que aborda simultaneamente as fases hepática e sanguínea da malária, simulando a situação de uma área endêmica na qual as vítimas podem ser picadas diversas vezes pelos insetos transmissores.
“Utilizamos modelos de camundongos infectados pela malária já na fase sanguínea e os infectamos pela segunda vez com a fase hepática. Quando medimos a infecção no fígado dos animais, observamos que a resposta da segunda infecção era muito mais baixa do que a primeira. Isso talvez explique por que nem todos que contraem a doença em áreas endêmicas vão a óbito”, disse à Agência FAPESP.
O próprio sistema funciona como um mecanismo de controle. Se a resposta da segunda infecção fosse tão intensa como a primeira, o hospedeiro teria uma superinfecção, desenvolvendo uma forma mais severa da doença, como uma malária cerebral, uma anemia severa, ou uma síndrome respiratória. Nesses casos, o índice de mortalidade é muito mais alto e a reversão do quadro clínico se torna muito difícil.
“Nossa primeira suspeita foi que a proteção proporcionada pela segunda infecção estaria relacionada a uma resposta do sistema imune. Mas realizamos uma série de experimentos com insetos deficientes para linfóticos e verificamos que isso não afetava o fenótipo: independentemente da resposta imunológica, o impacto da segunda infecção era sempre menor”, disse a pesquisadora.
Suplementação de ferro
Com a hipótese da resposta imunológica descartada, o grupo prosseguiu com os testes e descobriu que a proteção produzida pela segunda infecção estava relacionada ao aumento da hepcidina – um hormônio produzido pelo fígado que se encarrega de redistribuir pelo resto do organismo a quantidade de ferro presente no órgão.
“O parasita precisa do ferro para se desenvolver e, com a primeira infecção, retira o ferro da circulação sanguínea, diminuindo também sua abundância no fígado. Na segunda infecção, o fígado tem pouco ferro disponível e o parasita não consegue se multiplicar, evitando a superinfecção”, explicou Sabrina Epiphanio.
O trabalho mostrou que, quanto mais células eram infectadas na circulação, mais aumenta a concentração de hepcidina, que se encarrega de retirar ferro da circulação, tornando as células hepáticas carentes em ferro e impedindo a superinfecção.
“Quando utilizamos drogas que bloqueavam a produção da hepcidina – tanto in vivo como in vitro–, o fenótipo era revertido, isto é, os níveis de ferro se mantinham e a segunda infecção se tornava tão severa como a primeira”, disse.
A principal contribuição do trabalho, segundo Epiphanio, poderá ser o seu impacto nas políticas públicas mundiais de suplementação de ferro em áreas onde há grande incidência de anemia. Em muitos casos, essas áreas coincidem com as zonas endêmicas de malária.
“A administração de ferro em crianças anêmicas nessas regiões pode contribuir para a incidência de superinfecção de malária nas áreas endêmicas. A literatura registra que em Zanzibar, na África, programas de prevenção da anemia que contavam com a suplementação de ferro foram seguidos de aumento dos índices de malária”, disse Epiphanio.
Fonte: Agência Fapesp